Você pode estar dirigindo um carro mais rodado do que o indicado no marcador de quilometragem, o hodômetro. A adulteração da contagem, prática que já lesou inúmeros consumidores, agora ganha força para compensar a desvalorização do automóvel usado desde que o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) foi reduzido para os modelos zero quilômetro.
Para conseguir preço melhor na venda, motoristas transgridem a lei na esperança de uma avaliação melhor por parte do comprador. Oficinas de Belo Horizonte oferecem o serviço sem pudor algum e transferem a batata quente para o consumidor.
A bomba foi parar na mão do especialista em suporte de informática Élcio Batista Peixoto Júnior, de 25 anos. Depois de comprar um Fiat Uno 2006 em uma loja de usados da capital mineira, em fevereiro, ele levou o carro a um mecânico de confiança para revisão. Lá, recebeu a notícia de que seu veículo de 28,9 mil quilômetros tinha rodado na verdade 40,5 mil. “Com a redução do IPI, há muita gente baixando a quilometragem para conseguir preço melhor na troca.
Caí nessa, mas pelo que andei pesquisando é mais comum do que se imagina”, lamenta. Ele teve que fazer a revisão em várias peças que não esperava, mas conseguiu negociar o gasto com a agência onde comprou o veículo adulterado. “Fizemos um acordo e eles me reembolsaram”, conta.
O Estado de Minas ligou, como cliente, para duas oficinas da capital mineira que fecharam o serviço pelo próprio telefone. Elas adulteram não só o hodômetro, como a central (a memória) do veículo, surpreendendo até mesmo os especialistas. O serviço varia entre R$ 50, quando são reduzidos somente os dados do painel, e R$ 200, no caso de sincronização da quilometragem do hodômetro com a da central. Os atendentes tranquilizam o cliente quando o assunto é burlar a lei.
Garantem que é uma prática cada vez mais comum com a desvalorização dos usados provocada pela redução do IPI para incentivo da venda de carros novos. Quando a reportagem voltou a ligar, desta vez identificando como imprensa, os responsáveis pelas duas oficinas disseram prestar somente serviço de manutenção e não ter mais nenhuma informação a ser dada.
Alexandre Dias Generoso, proprietário da oficina High Torque, tem o equipamento que faz o rastreamento da quilometragem real do veículo, por meio da memória central existente nos modelos mais novos. “Isso sempre aconteceu, mas passou a ser corriqueiro desde a queda do preço do usado”, afirma. Ele conta que uma variedade de importantes itens, como suspensão e freio, precisa ser verificada com 60 mil e 80 mil quilômetros, por exemplo, e com a redução da quilometragem a revisão passa batido. “Além do prejuízo financeiro, a peça danificada põe em risco a segurança do motorista e a dos passageiros. É muito grave”, alerta.
Em Belo Horizonte foram vendidos 66,5 mil carros usados de janeiro a outubro, uma expansão de 9,4% em relação ao mesmo período do ano passado (60,8 mil), segundo dados da Associação dos Revendedores de Veículos Usados de Minas Gerais (Assovemg). Apesar do aumento dos negócios, os preços tiveram queda proporcional à redução do IPI nos carros novos, em torno de 7%.
O presidente da entidade, Rodrigo Souki, disse que até agências e concessionárias caem no golpe do hodômetro. “É mais fácil a pessoa que entregou o carro para a loja ter adulterado a quilometragem do que a agência. Nós estamos instalados legalmente. Diante de qualquer problema, nosso nome fica comprometido”, afirmou.
O mecânico Júlio César de Souza dá algumas dicas para motoristas identificarem a fraude. Primeiro: desconfiar da quilometragem do carro, levando em consideração que um veículo rode cerca de 15 mil km por ano. Segundo: se o novo motorista descobrir algo que foi escondido pelo vendedor, vale fazer uma radioagrafia de todo o carro. “Quem faz uma coisa faz várias”, disse. Terceiro: fazer a verificação do hodômetro e da central do carro. É preciso procurar uma oficina que tenha o equipamento. O ideal, segundo Souza, é que o mecânico seja de confiança. “Não é raro profissionais fazerem serviços inadequados e ainda cobrarem caro”, pondera.
Vistoria começa em SP
O Departamento Estadual de Trânsito (Detran) de São Paulo anunciou ontem que vai vistoriar o hodômetro dos carros usados, decisão que abre caminho para ser adotada em outros estados. A medida é simples e de baixo custo. Em vez de ter que comprar equipamentos para a checagem, o que precisaria até de licitação, o órgão fará o registro dos quilômetros rodados toda vez que o carro passar pelo Detran.
A inspeção ocorreria na vistoria obrigatória para a transferência de propriedade (venda do carro), que já checa os números de chassi e placa. Daí, os dados poderiam ser consultados pelo comprador antes de ele fechar negócio, ou pela internet ou pelo telefone. Na prática, se o consumidor avalia um carro com 50 mil quilômetros e a última vistoria identificou contagem maior do que isso, significa que pode ser um golpe.
A medida será publicada no Diário Oficial do estado no início de dezembro e entrará em vigor logo em seguida. Em Minas, o Detran ainda avalia a possibilidade de adotar a vistoria. “A adulteração é um absurdo. Compromete a segurança do veículo. É impossível um leigo saber se existe algo errado ou não. Somente uma vistoria técnica pode identificar o problema.
A iniciativa do Detran não resolve o problema, mas inibe a prática”, diz a deputada estadual Maria Lúcia Amary (PSDB), que encaminhou a sugestão ao departamento depois de receber diferentes denúncias. Entre elas, o do administrador de empresas Ricardo Sabanae, de 39 anos.
Ele comprou um veículo da marca Subaru em uma loja multimarcas em maio de 2009, com 88 mil km. Após constatar um vazamento de óleo, levou o carro até uma concessionária autorizada, que, pela placa, tinha acesso ao histórico do automóvel. “Quando o carro passou pela autorizada em 2005, ele tinha 110 mil quilômetros rodados, portanto, seria impossível estar em 2009 com 88 mil.
Preocupado com a segurança da minha família, troquei diversas peças que teoricamente não precisariam ser trocadas”, diz. Ele gastou mais de R$ 3 mil, tentou acordo para a agência pagar parte do prejuízo, mas não conseguiu nada. “Fiz um boletim de ocorrência por precaução, mas sei que dificilmente chegaremos até o culpado”, finaliza.
A adulteração do hodômetro é crime que pode resultar em prisão de três meses a um ano, além de multa, segundo o coordenador do Procon Assembleia, Marcelo Barbosa. Ele explica que, pelo Código de Defesa do Consumidor, a alteração da quilometragem é um “vício” do produto que diminui o valor dele. Detectado o golpe, é preciso retornar ao vendedor, pedir a marcação verdadeira, o abatimento proporcional ou até mesmo tentar desfazer o negócio.
Caso não consiga, a orientação é recorrer ao Procon, caso seja uma concessionária ou agência. Se for contra uma pessoa, o indicado é dar queixa na Delegacia de Defesa do Consumidor e procurar a Justiça. “A pessoa que comete a adulteração pode ser enquadrada, inclusive como estelionatário por auferir vantagem econômica de uma pessoa de forma ilegal”, alerta.
Fonte: UAI